segunda-feira, 24 de abril de 2017
AS PORTAS QUE ABRIL ABRIU
Era uma
vez um país
onde entre
o mar e a guerra
vivia o
mais infeliz
dos povos
à beira-terra.
Onde entre
vinhas sobredos
vales
socalcos searas
serras
atalhos veredas
lezírias e
praias claras
um povo se
debruçava
como um
vime de tristeza
sobre um
rio onde mirava
a sua
própria pobreza.
Era uma
vez um país
onde o pão
era contado
onde quem
tinha a raiz
tinha o
fruto arrecadado
onde quem
tinha o dinheiro
tinha o
operário algemado
onde suava
o ceifeiro
que dormia
com o gado
onde
tossia o mineiro
em
Aljustrel ajustado
onde
morria primeiro
quem
nascia desgraçado.
Era uma
vez um país
de tal
maneira explorado
pelos
consórcios fabris
pelo mando
acumulado
pelas
ideias nazis
pelo
dinheiro estragado
pelo
dobrar da cerviz
pelo
trabalho amarrado
que até
hoje já se diz
que nos
tempos do passado
se chamava
esse país
Portugal
suicidado.
Ali nas
vinhas sobredos
vales
socalcos searas
serras
atalhos veredas
lezírias e
praias claras
vivia um
povo tão pobre
que partia
para a guerra
para
encher quem estava podre
de comer a
sua terra.
Um povo
que era levado
para
Angola nos porões
um povo
que era tratado
como a
arma dos patrões
um povo
que era obrigado
a matar
por suas mãos
sem saber
que um bom soldado
nunca fere
os seus irmãos.
Ora
passou-se porém
que dentro
de um povo escravo
alguém que
lhe queria bem
um dia
plantou um cravo.
Era a
semente da esperança
feita de
força e vontade
era ainda
uma criança
mas já era
a liberdade.
Era já uma
promessa
era a
força da razão
do coração
à cabeça
da cabeça
ao coração.
Quem o fez
era soldado
homem novo
capitão
mas também
tinha a seu lado
muitos
homens na prisão.
Esses que
tinham lutado
a defender
um irmão
esses que
tinham passado
o horror
da solidão
esses que
tinham jurado
sobre uma
côdea de pão
ver o povo
libertado
do terror
da opressão.
Não tinham
armas é certo
mas tinham
toda a razão
quando um
homem morre perto
tem de
haver distanciação
uma
pistola guardada
nas dobras
da sua opção
uma bala
disparada
contra a
sua própria mão
e uma
força perseguida
que na
escolha do mais forte
faz com
que a força da vida
seja maior
do que a morte.
Quem o fez
era soldado
homem novo
capitão
mas também
tinha a seu lado
muitos
homens na prisão.
Posta a
semente do cravo
começou a
floração
do capitão
ao soldado
do soldado
ao capitão.
Foi então
que o povo armado
percebeu
qual a razão
porque o
povo despojado
lhe punha
as armas na mão.
Pois
também ele humilhado
em sua
própria grandeza
era
soldado forçado
contra a
pátria portuguesa.
Era preso
e exilado
e no seu
próprio país
muitas
vezes estrangulado
pelos
generais senis.
Capitão
que não comanda
não pode
ficar calado
é o povo
que lhe manda
ser
capitão revoltado
é o povo
que lhe diz
que não
ceda e não hesite
- pode
nascer um país
do ventre
duma chaimite.
Porque a
força bem empregue
contra a
posição contrária
nunca
oprime nem persegue
- é força
revolucionária!
Foi então
que Abril abriu
as portas
da claridade
e a nossa
gente invadiu
a sua
própria cidade.
Disse a
primeira palavra
na
madrugada serena
um poeta
que cantava
o povo é
quem mais ordena.
E então
por vinhas sobredos
vales
socalcos searas
serras
atalhos veredas
lezírias e
praias claras
desceram
homens sem medo
marujos
soldados 'páras'
que não
queriam o degredo
dum povo
que se separa.
E chegaram
à cidade
onde os
monstros se acoitavam
era a hora
da verdade
para as
hienas que mandavam
a hora da
claridade
para os
sóis que despontavam
e a hora
da vontade
para os
homens que lutavam.
Em idas
vindas esperas
encontros
esquinas e praças
não se
pouparam as feras
arrancaram-se
as mordaças
e o povo
saiu à rua
com sete
pedras na mão
e uma
pedra de lua
no lugar
do coração.
Dizia
soldado amigo
meu
camarada e irmão
este povo
está contigo
nascemos
do mesmo chão
trazemos a
mesma chama
temos a
mesma ração
dormimos
na mesma cama
comendo do
mesmo pão.
Camarada e
meu amigo
soldadinho
ou capitão
este povo
está contigo
a malta
dá-te razão.
Foi esta
força sem tiros
de antes
quebrar que torcer
esta
ausência de suspiros
esta fúria
de viver
este mar de
vozes livres
sempre a
crescer a crescer
que das
espingardas fez livros
para
aprendermos a ler
que dos
canhões fez enxadas
para
lavrarmos a terra
e das
balas disparadas
apenas o
fim da guerra.
Foi esta
força viril
de antes
quebrar que torcer
que em
vinte e cinco de Abril
fez
Portugal renascer.
E em
Lisboa capital
dos novos
mestres de Aviz
o povo de
Portugal
deu o
poder a quem quis.
Mesmo que
tenha passado
às vezes
por mãos estranhas
o poder
que ali foi dado
saiu das
nossas entranhas.
Saiu das vinhas
sobredos
vales
socalcos searas
serras
atalhos veredas
lezírias e
praias claras
onde um
povo se curvava
como um
vime de tristeza
sobre um
rio onde mirava
a sua
própria pobreza.
E se esse
poder um dia
o quiser
roubar alguém
não fica
na burguesia
volta à
barriga da mãe.
Volta à
barriga da terra
que em boa
hora o pariu
agora
ninguém mais cerra
as portas
que Abril abriu.
Essas
portas que em Caxias
se
escancararam de vez
essas
janelas vazias
que se
encheram outra vez
e essas
celas tão frias
tão cheias
de sordidez
que
espreitavam como espias
todo o
povo português.
Agora que
já floriu
a
esperança na nossa terra
as portas
que Abril abriu
nunca mais
ninguém as cerra.
Contra
tudo o que era velho
levantado
como um punho
em Maio
surgiu vermelho
o cravo do
mês de Junho.
Quando o
povo desfilou
nas ruas
em procissão
de novo se
processou
a própria
revolução.
Mas eram
olhos as balas
abraços
punhais e lanças
enamoradas
as alas
dos
soldados e crianças.
E o grito
que foi ouvido
tantas
vezes repetido
dizia que
o povo unido
Jamais
seria vencido.
Contra
tudo o que era velho
levantado
como um punho
em Maio
surgiu vermelho
o cravo do
mês de Junho.
E então
operários mineiros
pescadores
e ganhões
marçanos e
carpinteiros
empregados
dos balcões
mulheres a
dias pedreiros
reformados
sem pensões
dactilógrafos
carteiros
e outras
muitas profissões
souberam
que o seu dinheiro
era presa
dos patrões.
A seu lado
também estavam
jornalistas
que escreviam
actores
que se desdobravam
cientistas
que aprendiam
poetas que
estrebuchavam
cantores
que não se vendiam
mas
enquanto estes lutavam
é certo
que não sentiam
a fome com
que apertavam
os cintos
dos que os ouviam.
Porém
cantar é ternura
escrever
constrói liberdade
e não há
coisa mais pura
do que
dizer a verdade.
E uns e
outros irmanados
na mesma
luta de ideais
ambos
sectores explorados
ficaram
partes iguais.
Entanto
não descansavam
entre
pragas e perjúrios
agulhas
que se espetavam
silêncios
boatos murmúrios
risinhos
que se calavam
palácios
contra tugúrios
fortunas
que levantavam
promessas
de maus augúrios
os que em
vida se enterravam
por serem
falsos e espúrios
maiorais
da minoria
que diziam
silenciosa
e que em
silêncio fazia
a coisa
mais horrorosa:
minar como
um sinapismo
e com
ordenados régios
o alvor do
socialismo
e o fim
dos privilégios.
Foi então
se bem vos lembro
que
sucedeu a vindima
quando
pisámos Setembro
a verdade
veio acima.
E foi um
mosto tão forte
que sabia
tanto a Abril
que nem o
medo da morte
nos fez
voltar ao redil.
Ali
ficámos de pé
juntos
soldados e povo
para
mostrarmos como é
que se faz
um país novo.
Ali
dissemos não passa!
E a
reacção não passou.
Quem já
viveu a desgraça
odeia a
quem desgraçou.
Foi a
força do Outono
mais forte
que a Primavera
que trouxe
os homens sem dono
de que o
povo estava à espera.
Foi a
força dos mineiros
pescadores
e ganhões
operários
e carpinteiros
empregados
dos balcões
mulheres a
dias pedreiros
reformados
sem pensões
dactilógrafos
carteiros
e outras
muitas profissões
que deu o
poder cimeiro
a quem não
queria patrões.
Desde esse
dia em que todos
nós
repartimos o pão
é que
acabaram os bodos
-
cumpriu-se a revolução.
José
Carlos Ary dos Santos, OBRA POÉTICA,
1975
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